“Mentalmente e fisicamente, me sinto esgotada.” Quem são as vítimas do assédio nas empresas?
Um estudo conduzido pelo Instituto Patrícia Galvão revelou que, aproximadamente, metade das mulheres enfrentam assédio moral e sexual nos locais de trabalho. Em 2023, foram registradas mais de 100 mil denúncias
✏️ Por Sarah Coutinho.
7h — Despertava com excesso de preocupações, ansiedades e o coração acelerado pela falta de descanso na noite anterior.
8h — Meu telefone pessoal notificava os áudios e as mensagens da gestão a respeito das demandas exigidas pelos(as) clientes. Costumava brincar com as minhas colegas de ofício que o nosso café da manhã era à base de estresse solúvel e, como acompanhamento, os rastros das ofensas deixados no dia anterior.
8h30 — Apenas 30 minutos para o dia já parecer interminável e caótico.
9h — O estresse já era o suficiente para me fazer ter crises de ansiedade, por estar ali, dependente e imersa naquele emprego.
10h — Apenas duas horas para o fim do primeiro turno. Eu e minhas colegas de trabalho já tínhamos chorado no banheiro, saído para tomar um ar e/ou deixado escancarada toda a raiva nos grupos privados do WhatsApp. Costumávamos nos perguntar: “como ninguém vê o que está acontecendo? Será que estamos enlouquecendo?”, mesmo sabendo que sempre olharíamos umas para as outras e diríamos: “não, eu vi.”
12h — Intervalo. Enquanto todos saíam, ficávamos ali, lidando com as demandas intermináveis e com as broncas dos(as) clientes. Também parávamos para comer, andar um pouco e desabafar sobre os problemas da manhã.
14h — Apenas 4 horas para a finalização do turno, mas parecia apenas o início. Em meio ao furdunço de demandas de última hora para serem entregues com excelência, ainda precisávamos lidar com reuniões extensas sem objetivo e longas gravações.
15h — Hora do café? “Para quem?”, nos perguntávamos. Em meio ao caos vespertino, a gestão ainda oferecia piadas preconceituosas para uma plateia formada por seis mulheres (que repudiavam contracenar com esse teatro).
16h — Pensávamos: “eles fizeram algo hoje?!” e tínhamos a resposta logo em seguida: não produziram durante o dia, e, agora, distribuíram mais tarefas com prazos curtos de entrega. Essa pressão fazia duvidarmos do nosso potencial. Achávamos que não éramos competentes o suficiente e/ou que não merecíamos algo melhor.
17h — Erros aparecem e mais um ato da peça é iniciado. Somos responsabilizadas, chamadas de substituíveis e os gestores solicitam que sejamos mais proativas.
17h30 — “Precisamos conversar”. “Você erra porque está frágil mentalmente”. “Nossos(as) clientes nos moldam”. “Você precisa passar por isso para ficar mais forte”. “Não há motivo para chorar”. “Na próxima chamada, você pode ser a próxima a ir embora”.
18h — O turno é encerrado e os gestores falam dos seus compromissos pessoais pós-expediente. E nós, ficamos ali, presas em nossa própria amargura porque sabíamos que ainda teríamos mais algumas horas extras neste lugar.
(…)
Cerca de 12 horas depois, voltaria a acordar cheia de preocupações, ansiedades e o coração acelerado pela falta de descanso na noite anterior.
//Relato baseado nas experiências da autora.
O cenário descrito acima é apenas um recorte da realidade de muitas mulheres que são vítimas do assédio moral e sexual no ambiente de trabalho. Seja por lideranças femininas e/ou masculinas, até 2023 foram mais de 8.458 denúncias no país, segundo os dados divulgados esse ano pelo Ministério do Trabalho. Sobrecargas, horários estendidos, comunicação que não comunica — questões mais presentes no cotidiano de trabalhadoras ao redor do país. Uma única explicação: o assédio é, sim, uma questão de gênero.
De acordo com a Cartilha de Prevenção ao Assédio Moral produzida pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST), o assédio moral é caracterizado por toda e qualquer violência (palavras, comportamentos, gestos, atos, de uma forma geral) com objetivo de expor e/ou de constranger a vítima a situações humilhantes e constrangedoras no ambiente de trabalho. Além disso, desde 2021, é considerado crime, com reclusão de seis meses e multa (Lei 14.188/21).
As denúncias por outro tipo de assédio — o sexual — dobraram em 2023: são mais de 851 relatos contabilizados até julho. Além disso, o assédio sexual é considerado crime há mais de 20 anos no Brasil e, só em 2023, tivemos o decreto da lei aprovado para casos de violências desse teor no país.
Em 2021, o Instituto de Pesquisa do Risco Comportamental (IRPC) esteve em 24 empresas brasileiras e 41% dos entrevistados(as) mencionam passar por situações de assédio no ambiente de trabalho. No mesmo ano, o TST comprovou que as mulheres são as principais vítimas da violência nas empresas, após uma pesquisa lançada para mais de 50 mil pessoas de diversas profissões e localidades no país.
Durante a pandemia, houve um aumento de 187% nas denúncias. Atualmente, são mais de 100 mil casos registrados no Ministério do Trabalho. Em relação à raça, segundo o Instituto Patrícia Galvão, 55,7% são mulheres brancas e 53,5% são mulheres pardas e negras (autodeclarações).
O dado acima é referente às pessoas mais afetadas. Lembrando que, muitas vezes, essas denúncias não chegam até o Ministério, logo não são oficializadas institucionalmente, pelo medo das vítimas perderem os seus postos de trabalho.
Nem sempre essas violências ocorrem de maneira vertical entre pessoas de gêneros opostos. Podem ocorrer entre pessoas do mesmo grau de hierarquia e de gênero. Para ser mais didática, trouxe alguns exemplos aplicáveis a situações do dia a dia: elas podem estar no acúmulo ou atribuição de funções, desrespeito, cobranças, insultos, interrupções, supervisionamento excessivo, falas ofensivas, horas extras contínuas e falta de reconhecimento salarial.
A entrevistada Helena (nome fictício), de 25 anos, mulher branca, cisgênera, lésbica, de classe social nível D e profissional da comunicação há quase 5 anos, revela que desempenha mais de três funções e recebe pelo valor de uma. “Me sinto sobrecarregada, mas continuo nesse emprego porque realmente preciso da grana e tenho medo de ir para uma outra agência em que eu precise fazer o mesmo. Além disso, preciso ser boa em todas as áreas e não sou bem remunerada”, disse.
Se você já se questionou dos seus sentimentos com receio de estar “exagerando” ou “sensível demais”, é hora de se atentar a esse dado: 73,25% das mulheres já vivenciaram situações semelhantes. Para dar nome aos bois: gaslighting, que significa ‘distorcer’ em tradução livre ou controle coercitivo. É um tipo de violência psicológica sutil, no qual o abusador distorce a realidade e faz com que a vítima duvide de si mesma.
E é, sem sombra de dúvidas, a consequência do desmantelamento de uma estrutura capitalista neoliberal, patriarcal e machista. Por que capitalista neoliberal? Porque desde a entrada do neoliberalismo no Brasil na década de 90, nós, mulheres, tivemos (como ainda temos), os nossos direitos negociados e violados em seus diversos níveis, a exemplo do barateamento da mão de obra até o excesso de horas trabalhadas.
E por que machista e patriarcal? Porque em sociedades capitalistas a dominação do homem sobre a mulher sempre esteve explícita, seja na ocupação em cargos de liderança, no controle das finanças, na participação ativa da esfera pública, nos salários mais altos, como porta-vozes de assuntos importantes e por aí vai.
Além disso, vale frisar que se você, que está lendo esse texto, é mulher, a depender do seu contexto, cor, raça, etnia e sexualidade, a forma como são sentidas e vivenciadas essas violências, é totalmente desigual. É o caso da entrevistada Isabel, de 57 anos, uma mulher preta, cisgênera, heterossexual, de classe social nível nível E e atuante como recepcionista há mais de 8 anos, que já foi alvo de algumas colegas e pensou em desistir da profissão devido às represálias de outras funcionárias sobre o seu trabalho.
“Através dos olhares e das conversas paralelas entre minhas colegas, parecia que eu não merecia estar ali por não ter tido experiência na área. Pensei em desistir diversas vezes porque me sentia incapaz. Eu tinha vindo de uma cozinha, não tinha conhecimento sobre nada. Mas sabia que Deus me daria forças para aprender algo novo e resistir àquele lugar. Estou nele até hoje”, disse.
Vinculada –
Silenciamento do assédio nas empresas
Quais são os impasses e progressos institucionais para nós, mulheres?
Paulo Freire, em seu livro “Pedagogia do Oprimido”, já nos sinalizaria uma estrutura intrínseca nas relações de poder entre empregador e empregado: a cultura do silêncio. Para o autor, em razão do sistema em que estamos inseridos, a opressão é uma consequência das elites dominantes e, por isso, estaríamos sujeitos a nascer e a viver silenciados(as).
Segundo a pesquisa realizada pelo Think Eva, apenas 8% das vítimas denunciaram o agressor por medo de perder os seus postos de trabalho e mais da metade contou apenas para pessoas muito próximas. Além disso, 60% das vítimas possuem uma descrença das políticas e 78% diz que o que as impede de realizar a denúncia é a cultura da impunidade.
Quantas de nós já nos privamos de falar abertamente sobre essas questões em nossos locais de trabalho por que sentimos medo de perder os nossos empregos ou de passarmos por situações ainda piores? Quantas de nós já não sofremos pela culpa de acharmos que levamos para o pessoal algo que deveríamos relativizar por que o agressor sairá impune?
Em Brasília, a discussão tem ganhado peso após a aprovação do projeto de lei pelo atual presidente, Luiz Inácio Lula da Silva, que determina a igualdade salarial entre homens e mulheres e assegura o combate ao assédio moral e sexual no ambiente de trabalho.
Outras implementações institucionais têm ganhado espaço na Justiça como a sanção da lei que institui a aplicação de programas de combate do assédio sexual em empresas e uma outra que destina multa de R$20 mil além de demissão por justa causa para agressores(as).
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