Diaristas e domésticas: como o neoliberalismo afeta relações marcadas pela pessoalidade

Lia
5 min readMar 6, 2024

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Informalidade contratual, valores abaixo da média e assédios são reflexos de uma estrutura que atinge 92,7% das mulheres negras atuantes em serviços domésticos, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)

✏️ Por Sarah Coutinho.

Quando o seu trabalho é realizado em uma atmosfera familiar, como discernir o profissional do pessoal? De dia, operadora de telemarketing. À tarde, diarista. Mãe solo de um único filho. Elisa, mulher parda, de 33 anos, cisgênera, heterossexual, de classe social nível D, conheceu a palavra “trabalho” na adolescência, quando precisou ajudar nas despesas de casa. Começou como auxiliar de outra empregada doméstica: sabia como executar o trabalho graças aos saberes repassados pela sua avó, que também trabalhou na mesma função.

Para Elisa, ser diarista surgiu como um freela para complementar a renda, já que o que recebe como operadora de telemarketing não paga suas contas. Sua rotina vai até aos sábados como operadora (das 7h às 13h15) e até aos domingos (das 14h às 18h), como diarista. Ambos os empregos são presenciais, logo, descansar torna-se um desafio. No call center, há uma pausa de 10 minutos durante a manhã e mais de 20 minutos no almoço. Já como diarista, os horários dependem do cliente.

Mas como desempenhar duas funções que demandam tanto de si? Elisa é parte de um recorte social e cultural de mulheres e mães solos que precisa recorrer a uma jornada dupla de trabalho para sobreviver ao sistema capitalista-neoliberal em que estamos inseridos(as). No Brasil, essa estatística corresponde a 55% das mulheres solteiras, viúvas ou divorciadas, segundo o levantamento de dados do Datafolha.

Atualmente, o número é de 4,3 milhões de diaristas sem carteira assinada no Brasil e, em dez anos da regulamentação da profissão no país, o número de empregadas domésticas diminuiu, enquanto o de diaristas aumentou (três em cada quatro profissionais), como aponta o IBGE. Tal reação se deu pela crise econômica consequente da pandemia e pelo posicionamento das famílias diante dos acordos contratuais e da irregularidade no valor dos pagamentos.

De acordo com a Oxfam, ONG atuante em mais de 90 países, se as rendas das empregadas domésticas não registradas fossem somatizadas, ao total, teríamos algo em torno de US$10,8 trilhões de dólares produzidos e injetados na economia anualmente.

Isso significa que enquanto uma empregada doméstica com carteira assinada tem acesso aos direitos por lei (férias, seguro desemprego, FGTS), a diarista, pela ausência de formalidade na contratação, está isenta de qualquer tipo de benefício.

Até 2022, o salário de uma empregada doméstica registrada correspondia a uma média de R$1.480 enquanto àquelas sem carteira assinada, R$1.052. Já para as diaristas, o preço continua abaixo das expectativas, alcançando uma média em torno de R$907,00. Logo, concluímos que ficou mais rentável para a classe média brasileira ao passar dos anos.

Outro fator interessante é a proximidade relatada por Elisa com as famílias para as quais trabalha. Ao passo que a faz se sentir parte integrante de cada uma delas, também delimitam o seu lugar social, seja através das suas vestimentas e/ou até mesmo das suas unhas.

“Se você vai mais arrumada, é demitida. Uma pessoa já me parou no elevador pra dizer que uma diarista com unha de gel não poderia fazer faxina na casa dela. (…) Com as mulheres da casa, me sinto uma amiga nos bons momentos. Mas, nos momentos de estresse, descontam na mesma intensidade do elogio”, conta.

Conforme apontam os dados disponibilizados pelo IBGE, atualmente 92,7% das mulheres são negras, principalmente nas áreas da saúde, comércio e serviços sociais e domésticos. O código moral entre domésticas e patrões têm raízes escravocratas persistentes. Os patrões oferecem alimentação e proteção em troca de obediência e fidelidade das empregadas. Essa dinâmica reflete o medo histórico de violência, perseguição e exploração, além do receio contemporâneo de demissão e perda de credibilidade.

Para ilustrar essas tensões, podemos analisar o filme “Que Horas Ela Volta?” (2015), dirigido por Anna Muylaert. O filme retrata a história de uma empregada doméstica (interpretada por Regina Casé) que é tratada de maneira desigual pela família para a qual trabalha, embora seja considerada parte dela. Uma cena marcante ilustra essa dinâmica quando a empregada precisa levar seu filho pequeno para o local de trabalho. Apesar de ser tratado com igualdade pela família, ele não é autorizado a brincar com os brinquedos das crianças da casa.

A posição hierárquica entre ambos e a condição financeira são fatores determinantes e, muitas vezes, motivos de chantagem e/ou abuso de poder. Para a entrevistada, tal posicionamento dá vazão para outros assédios naturalizados pelas famílias. Um desses acontecimentos se deu quando o seu contratante disse que precisaria conversar com ela sobre outros assuntos que não diziam respeito à faxina.

Quantos casos já não vimos de pessoas que são mantidas em cárcere privado em condições análogas à escravidão? Em 2021, foram resgatadas 1.903 vítimas em situações degradantes e trabalhos forçados. Maior número após 2020, com 2.808 ocorrências.

O Canal Preto, uma iniciativa do Ministério Público do Trabalho em parceria com a Organização Mundial do Trabalho, conduziu entrevistas com diversas domésticas que compartilham suas experiências sobre as violências e os desafios enfrentados nesta profissão, majoritariamente ocupada por mulheres negras. Fonte: YouTube/Canal Preto.

Segurança à vítima

Há regulamentações que asseguram os direitos das domésticas no Brasil. A chegada da PEC das domésticas em 2013 foi responsável por assegurar direitos como salário-maternidade, auxílio doença, acidente de trabalho, horas extras, pensão por morte e aposentadoria por invalidez, idade e tempo de contribuição, além de estabelecer a carga horária de 8 horas por dia e 44 horas semanais.

Além disso, as violências domésticas cometidas em ambientes de trabalho podem ser denunciadas por intermédio da Lei Maria da Penha. A lei complementar de nº 150/2015 define que a doméstica que enfrentar um episódio de violência pode solicitar a rescisão do seu contrato com direito à indenização. Porém, a Constituição não prevê em nenhum dos casos o asseguramento das medidas de proteção para empregadas informais e/ou diaristas, o que reafirma os percalços e as fragilidades do sistema para a categoria.

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