Isabel e Olga já foram alvos da rivalidade feminina no ambiente de trabalho e fazem parte da estática de mulheres que enfrentam desafios em suas carreiras
✏️ Por Sarah Coutinho.
“Me sentia ofendida por outras mulheres”, disse Isabel, mulher preta, de 57 anos, cisgênera, heterossexual, de classe social nível E, recepcionista de uma unidade de saúde há oito anos. Desde que entrou na área, vivenciou episódios de assédio por outras colegas de trabalho. Já Olga, uma mulher branca, de 49 anos, cisgênera, heterossexual, de classe social nível D e vendedora há 23 anos em uma única loja de calçados, afirma o mesmo e acrescenta: “trabalhar com homens não é difícil, já com mulheres…”. Dito isso, como lidar com uma estrutura machista que entrelaça nossos comportamentos e fomenta a rivalidade feminina entre nós?
Segundo uma pesquisa realizada em 80 países, com homens e mulheres pelo Programa das Nações Unidas para Desenvolvimento (PNUD), 90% da população mundial declara ter algum tipo de preconceito contra as mulheres. Os principais indicadores são referentes à integridade física, educação, política e economia. No cenário brasileiro, o dado corresponde a 84,5% das pessoas com preconceitos com relação ao gênero.
Baseado nisso, observamos que os depoimentos das entrevistadas correspondem à porcentagem citada acima: ambas são funcionárias e vítimas do assédio moral executado por mulheres para com outras mulheres.
Para Isabel, a Unidade Básica de Saúde (UBS) em que trabalha é dirigida por uma boa líder. “Em todo esse tempo que estou aqui, nunca tive problemas com a gestão, ela sempre me auxiliou no que fosse necessário. O problema eram as mulheres que estavam aqui antes de mim.” Nas matérias anteriores, nós mostramos como colegas de ofício homens podem ser misóginos (ódio, desprezo ou preconceito contra às mulheres e meninas), mas por que estamos mais suscetíveis a esse discurso?
Tornar-se mulher em uma sociedade com raízes preconceituosas perpassa estruturas de manutenção do poder como o machismo. Alguns episódios na história comprovam essa dominação do masculino sobre o feminino: a caça às bruxas no Brasil, o casamento e a maternidade como meios de privação da liberdade feminina, além da falta de valorização, inclusão e reconhecimento salarial nas artes, cultura, economia e na vida política.
Dessa forma, estar em conjunto com outras ou questionar o seu papel social implicava em uma ameaça aos ‘bons costumes’. Não por acaso, o fantasma da rivalidade feminina acompanha gerações há décadas e pode ser vista como uma das maiores heranças deixadas pela estrutura patriarcal para as mulheres. Como narra Olga que, em todo o seu tempo de jornada profissional, sente que as mulheres “torcem menos pelo seu sucesso que os homens”.
A exemplo disso, a pesquisadora Nicoly Grevetti analisa como o sistema beneficia os homens em prol de outros e como a mulher é colocada como protagonista apenas em situações de desvalorização (seja através da desigualdade salarial entre homens e mulheres, seja em razão do barateamento da mão de obra e/ou da falta de sindicalização).
Por isso, precisamos falar sobre uma pauta cara às mulheres: a igualdade de gênero, que, apesar de antiga, segue em passos lentos. Somente em 2023, tivemos alguns avanços no Congresso. Entre eles, o sancionamento da lei de igualdade salarial entre os gêneros e a inclusão do assédio moral, sexual e a descriminação entre as infrações ético-disciplinares no estatuto da advocacia.
Logo, numa sociedade em que o gênero masculino é privilegiado e o feminino dispensável, a relação entre mulheres torna-se fragilizada. Para 46% das pessoas entrevistadas pelo laboratório de pesquisas Pew Research Center, os homens têm uma vida mais fácil que as mulheres, visto que possuem a chance de ter cargos de liderança e salários mais altos.
No caso das mulheres pretas, os índices são agravantes: elas recebem 46,3% a menos que os homens brancos e sofrem mais para entrar no mercado de trabalho em razão da falta de recursos e oportunidades. Além disso, devido ao racismo estrutural entranhado na cultura brasileira, são comumente associadas a profissões de serviço. De acordo com a coleta de dados realizada pelo IBGE em 2022, a presença de profissionais pretas é predominante na área de saúde, serviço social e doméstico.
Para as pesquisadoras Souza e Becker, fomos ensinadas a competir entre nós mesmas pela ausência de oportunidades de lugar social e no mercado de trabalho. Uma das maiores retratações do fator descrito acima encontra-se no sucesso de bilheteria O Diabo veste Prada, que além de nos apresentar a cultura de exploração provocada pelo capitalismo, incita a necessidade das funcionárias em se sobressair diariamente.
A título de curiosidade, além das entrevistadas, quantas de nós já não foram injustiçadas ou faltadas com respeito por outras profissionais? Os casos variam entre abusos de poder, constrangimentos, alvo de conversas e falta de reconhecimento. “Essas fofocas quase me fizeram desistir da profissão. Me sentia incapaz”, disse Isabel.
A recepcionista conta que, quando entrou na unidade, as colegas se negavam a ajudá-la. Assim como no relato acima, a partir do levantamento de dados do Instituto Patrícia Galvão, encontramos outras violências cometidas em ambientes profissionais, onde as mulheres são as principais vítimas. Elencamos algumas das mais recorrentes: opiniões não levadas a sério (37%); humilhadas na frente de outros colegas (33%); ouviram gritos ou xingamentos (40%); ameaçadas verbalmente (23%); discriminadas pela sua cor (11%) e vítimas de assédio sexual (12%).
Segundo um dos estudos do Instituto Onepoll, homens fofocam tanto quanto as mulheres. Mas por que há uma normalização da rivalidade feminina? Além de estarmos inseridas em um contexto machista, essa inclinação se dá, em especial, ao que aprendemos culturalmente. Seja através de ditados populares como “quando se fala com homem se olha nos olhos, com a mulher se olha na boca” e/ou de sucessos audiovisuais que acompanham gerações como Branca de Neve, Kill Bill, Meninas Malvadas, Pretty Little Liars e Gossip Girl.
A população brasileira é formada majoritariamente por mulheres e, embora correspondamos a 51,5% do Censo demográfico de 2022, nossa participação no mercado de trabalho ainda é 20% inferior à dos homens. Por isso, se vê a necessidade de discutirmos pautas no âmbito legislativo, judiciário e executivo, além de torná-la amplamente conhecida a partir da comunicação. Essas medidas não só asseguram os direitos femininos, como também, promovem a equidade entre os gêneros no mercado profissional.
Replicar os ensinamentos aprendidos com a família, filmes, séries novelas, músicas e com a cultura, de um modo geral, é inerente ao gênero. Problemas com colegas de ofício irão acontecer, é inevitável. Mas entender qual é a gênese dos argumentos que acusam a mulher como vilã, é de suma importância para não cairmos nas ciladas do sistema, reproduzirmos os mesmos discursos e ficarmos umas contras as outras.
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